sábado, 29 de setembro de 2012

LIMBO


imagens surreais
na noite concreta
pétalas ásperas em
preto e branco
e manco
são jorge na lua 
mandou buscar
a mão morta
e o beijo tácito
flácido
rostos derretendo
com peitos infláveis
como balões amarrados
na ponta dos dedos
na ponta
no pico mais alto
gelado
frio
...
fico frio
fumo um cigarro
a cerveja já ta quente
eu devo ter dormido.

sexta-feira, 31 de agosto de 2012

AOS POUCOS


a monotonia diária
o potencial desperdiçado
a ordem bagunçada
o choro engolido em seco
a cerveja congelada
a média perdida
o amor não correspondido
o bolso vazio
a vontade calada
o cigarro aceso pelo filtro
a música baixa
o relógio adiantado
a distância próxima
a coragem molestada
o frio incômodo
o tesão castrado
a hora marcada
o grito sufocado
o sono sem dormir
o isqueiro sem gás
a sede incessante
o medo inflamável
a palavra vazia
a ausência importuna
a moral ultrajante
o coito interrompido
o sorriso amarelo
a simpatia forjada
a mão trêmula
o aluguel vencido 
a tosse seca

a mentira imposta
a cor desbotada
o todo incompleto
a vida não vivida

sinto um cansaço crônico
sinto minhas forças minguarem
sinto o fôlego faltar
sinto estar morrendo

aos
poucos
...

terça-feira, 28 de agosto de 2012

CONVERSA


"O que você procura?", diz ela.
Tudo está em sua mente. O modo como você enxerga as coisas. Como deseja que elas sejam. São o que você as faz ser. São pequenas ou grandes como você. São tristes ou felizes como você. São loucas ou sãs como você. São o que você diz. São o que você deixa de dizer... Mais uma vez, Ruiva. Deve ser o vermelho. Devem ser os olhos. Deve ser qualquer coisa.
Eu penso ainda na outra Ruiva. Penso na Morte. E penso que esqueceram de dizer o que não é óbvio. Penso que a vida não tem nada de óbvio. Penso que não tem nada a fazer sentido. Penso no improviso de tudo. Penso no solo que errei. Simplesmente por errar. Penso na música que ando ouvindo. Penso na distância. Penso na saudade. Penso na minha bebida. Penso na minha vida. E o cigarro queima. E eu penso. Penso... Pode ser isso... Já me disseram que pode ser isso. Pensar demais. Não é confortável descobrir que tudo que te disseram é mentira e que a vida é bem mais podre e entediante na realidade por essência. Mas as pessoas estão na realidade de aparência. Elas realmente acreditam nisso. E cooperam para manter essa realidade forjada. Sempre o conto de fadas. Inventaram a felicidade. Fizeram você acreditar nela. E depois fizeram você se culpar por não tê-la. A faculdade que você não fez. O emprego que você não conseguiu. O par perfeito que você nunca achou. O carro que você não comprou. O deus que você não acredita. O filho que você não teve. A vida que não existe. Mitificaram a vida. A vida é orgânica e se decompõe. A vida é dor. É visceral. É viva. Não é mito. Não é perfeita. É defeituosa. É crua. Mas o Feio não está na moda. O Estranho é estranho. O Preguiçoso é preguiçoso. O Louco é louco. Eu não quero nada disso. Não vou achar por aqui o que eu quero.


"Não procuro nada.", respondo.

domingo, 1 de julho de 2012

SOBRE POMBOS


Já devia ser umas 16 hr quando desliguei o telefone. O dia já tinha sido chateante o bastante. A última gota transbordou. De monotonia. De agonia. De nervos. Mergulho a cabeça na pia do banheiro e saio para comprar cigarros. Quase não faz sentido mais mandar oxigênio para os pulmões sem a fumaça. É tudo fumaça. Lembranças, anseios, desejos, fome, sede, tesão, força, ânimo... Sombria. Cinza. Fria. Fumaça. E ela dança no vento. E se perde. E some. E desmaterializa. Foge.
Paro em um parque já com os cigarros. Sento em um banco e ascendo o primeiro. Sento e observo a vida que passa. A minha e a dos outros. E eles parecem distantes. Assisto a tudo como se fosse o único na platéia. O único a assistir essa peça chata e entediante que é a vida. A minha e a dos outros. Comerciantes, donas de casa, advogados, médicos, letrados, cientistas, religiosos, estudantes, professores, jogadores de futebol, publicitários, jornalistas, analistas, minimalistas da vida. Minimalistas... A vida mingua porque a minguam. As portas da percepção estão fechadas. Você só vê parte do todo. Você minimiza. Ignora. Destrói. O todo é preenchido com um grande vazio. O vazio incomoda. Um incômodo crônico. Você perde sua liberdade. Você se prende a esse incômodo até encontrar outro pra te chatear. E de chateação em chateação se tem a "vida".
Trago a fumaça. Liberto-a para sumir. A fumaça. Trago e vejo pombos alinhados nos fios dos postes, nas árvores, no chão. Estão olhando. Estão na sarjeta. Estão a procura de migalhas. Estão sobrevivendo já condenados à morte. Sujos. Nojentos. Marginalizados. Excluídos. No submundo. Mas voam. Vivem no lixo. Essa é a condição que lhes foi imposta. Comem lixo. Respiram lixo. Observam lixo. Mas depois, voam.
Ascendo outro cigarro. As pessoas continuam caminhando. Eu continuo observando. Me sinto mais próximo aos pombos do que às pessoas. Sempre mantive aversão a pombos. Talvez fosse essa inconsciente semelhança. É difícil aceitar o podre dentro de si. É difícil aceitar que se está no lixo. É difícil ser parte do lixo. É difícil ficar com as migalhas. É difícil ser excluído do todo. É difícil aceitar o submundo. É difícil se ver fora do conto de fadas que sempre te contaram. É difícil aceitar o real. É difícil aceitar o abuso. É difícil fugir do abuso... Observo a rua. Como as migalhas da praça. Pouso num fio de alta tensão. Cago em cima de tudo.
Termino o segundo cigarro. Caminho pra casa. Não sei voar.

domingo, 17 de junho de 2012

ENTREVISTA (OU PAPO FURADO)


Estou sentado de frente ao entrevistador e escuto - ou não - toda a lavagem cerebral que ele tenta aplicar.

Saio do banho e escolho uma de minhas melhores camisas. Cabelo arrumado, barba feita, loção pós barba e perfume. Relógio no pulso. Eu já devia ter sacado daí que estava sendo abusado. De certa forma sabia. Abstraio. Junto os documentos e vou ao encontro marcado. A corda está no pescoço com o nó dado.
O local é um hotel. Aguardo um tempo no hall de entrada e depois me mandam para uma sala. Cadeira, mesa, cadeira. É a sala do interrogatório. Fico sozinho por mais um tempo. Deve ser parte do plano. A porta se abre. Vai começar. Nesse caso não existe o policial bom e o policial mau. Um engravatado faz o serviço dos dois. O policial bom começa. Sua forçada simpatia é irritante. Pergunta da minha vida como se realmente se importasse. Fala de sua vida como se eu me importasse. O próximo passo é tratar do cargo em questão. Diz todos os "benefícios". Foi rápido. Vez do policial mau. Fala de toda a merda. Fala e observa minha reação. Ele precisa saber se vou aguentar todo o estupro físico e psicológico. Não foi rápido. Mantive minhas expressões faciais inertes. Os tempos de poker me ajudaram. Não demonstrei meu desprezo. Não demonstrei nada. Vejo sua insatisfação por não ter conseguido. Escolhe falar da empresa. O policial bom volta. Diz o quanto é bom servir aquela empresa. O quanto eu posso "crescer" lá dentro. Maravilha! Ele me conta o seu conto de fadas. Diz que começou no mesmo cargo que eu. "Hoje sou casado e tenho uma vida financeira estável". Lixo. "Trabalhar aos domingos e feriados já é parte da minha vida. Domingos são chatos". Lixo. "Uma grande empresa, com grandes oportunidades". Lixo. Lixo. Lixo...

Estou sentado de frente ao entrevistador e escuto - ou não - toda a lavagem cerebral que ele tenta aplicar. Lixo. Deixo completamente de ouví-lo. Sua voz está distante. Ouço o ar condicionado funcionar. Ouço o falatório que começa fora da sala. Ouço minha cabeça gritando para parar. Agora o abuso já está presente demais para abstrair. Mantenho minhas expressões ainda inertes. O fôlego minguou. Não sobrou quase nada. Finjo ouvir o policial bom para ver até onde aguento. Ele para. Me entrega um questionário para finalizar toda a merda. "Responda esse questionário. Logo eu volto para buscá-lo". Estou sozinho de novo. É bom estar sozinho. Leio o questionário e sinto o mesmo cheiro podre de toda a conversa. "O que você espera da empresa?", "o que a empresa pode esperar de você?", "o que você acha de trabalhar aos domingos e feriados?", "porque esse trabalho é importante para você?"... lixo. Decido mudar o rumo das coisas. Respondo com total sinceridade as perguntas. Grito no papel toda minha náusea. Falo meus reais interesses e critico toda a groselha que tentaram me convencer. "Qual sua maior qualidade e seu maior defeito?". "sinceridade, nos dois casos", respondo. Acabo. Fico aguardando por mais alguns minutos na sala. O engravatado volta. Pergunta se eu terminei. Levanto e o encaro. Abro um sorriso sarcástico no rosto - o primeiro da entrevista - e estico o braço para entregá-lo. Ele devolve o sorriso com a ignorância de sua simpatia forçada pegando as folhas. 
Saio do prédio com a sensação de que perdi a vaga.

Acendo um cigarro. Volto a ter fôlego.

segunda-feira, 11 de junho de 2012

PALAVRAS SOLTAS


risco o fósforo
fogo
acendo as ideias
é recíproco
trago
encho os pulmões
aguardo
solto
as ideias ficam
escrevo,
ou não
falo,
ou não
penso...


encho o copo
dose dupla de palavras
mais uma vez
digo, ou não
me afogam
me sufocam
me torturam
me estupram
as palavras
malditas!
as palavras estão soltas
CUIDADO!
inundam minha mente
e a sua
falta tinta na máquina
tarde demais
empunho o revólver
miro as palavras
as ideias
a cabeça...


BANG.

quinta-feira, 7 de junho de 2012

T

tempo...


tempo...


TEMPO...


tempo...


temp...


temp...


tem...


tem...


te...


te...


t...




tempo te tem.



sábado, 2 de junho de 2012

FRIO


a frieza me consome
como me consomem as ideias
num dia cinza de outono
esperando a ultima folha cair,
esperando a ultima gota,
esperando a morte.
sentado,
entediado,
cansado.
e meu grito calado é alto demais pra ouvir.
é grave,
e rouco,
e desesperado.
é louco!
sou louco!
minha loucura é o que me mantém são.
minha loucura me afasta da podridão do mundo.
e me aproxima.
minha loucura me afasta da doença dos homens.
e me aproxima.
minha loucura me afasta do cheiro de merda.
e me aproxima.
minha loucura me afasta da vida. 
e me aproxima.
minha loucura me afasta da morte.
e me aproxima.
sou próximo a tudo
mas numa dimensão distante.
e só minha.
não a divido.
nem quero.
preciso ficar só.


desculpe, baby,
eu vou me fechar.

terça-feira, 1 de maio de 2012

VÍCIOS


Hoje encontrei, na bagunça de uma gaveta, um pedaço de papel velho e sujo, com uma lista de filmes escrita em uma caligrafia corrida e mal feita. Seria um bom programa para uma sexta-feira solitária. "Requiem for a Dream".

Quando criança, costumava acompanhar minha mãe onde quer que ela fosse. Aos domingos, acordava cedo para ver as corridas de fórmula 1 com meu pai. Aos 11 anos andava de bicicleta com os amigos. Aos 14 tinha uma banda de rock. Aos 18 queria entrar na faculdade. Aos 20 e já alguma coisa... não sei. É sempre ínfima a visão do presente. É traiçoeira. E quando você se joga por inteiro nele, se enrosca. Os nós são atados inconscientemente. E são precisos. E a gente se enrosca. Incomoda. Mas os vícios nos mantém. TV, video-game, livros, filmes, músicas, caminhadas, violência, amigos, mulheres, computador, cigarro, faculdade, trabalho, masturbação, compras, jogo, bebida, sono, conversas, violão, namoro, tricô, culinária, artesanato, rotina, carros, motos, viagens, seriados, coleções, família, remédios, desgraças, fofocas, drogas, religião, saudade, casa, brigas, tudo. Menos vida. A gente se prende a uma realidade forjada. Uma não realidade. A gente se prende a alguma coisa. Tem que ter alguma coisa pra amparar. Pra confortar. Pra se ocupar. O vício. Somos levados a uma dimensão só nossa. Só minha. Só sua. A dependência é uma prisão psicológica. É uma prisão social. No fundo, a gente está sempre sozinho. Cada um com sua realidade.
Nas ruas, os olhares são diferentes. E cada olhar é a câmera do protagonista. E cada protagonista vive em seu filme. Um aglomerado de pessoas que se interligam. Mas estão distantes pelas suas realidades. O roteiro não existe. E você planeja ou improvisa. O planejamento te decepciona. Mas traz a sensação de alguma certeza. De progresso. É vício. O improviso é incerto. Mas nunca erra. É improviso. E é vício. Viver a intensidade do improviso é libertário. É êxtase. De todo modo, você se prende. E é levado pela vontade de chegar alto. A inércia incomoda. Dos vícios, você escolhe aquele que vai te levar. Existe um sonho a ser alcançado. Planejado ou não. E o caminho até lá é seu vício.
Você caminha sem a consciência de estar caminhando. Você caminha pela luz. Você caminha pela escuridão. Você caminha correndo. Você caminha parado. Você caminha acompanhado. Você caminha só. Você caminha cantando. Você caminha calado. Não tem como parar. O tempo controla. E você se entrega a ele. E caminha. Caminha em sua realidade. E também nas outras. Você nasce. E morre. Você dá vida. E mata. Você respira. E asfixia. Você ganha. E perde. Você controla. E é controlado. Você traga. E é tragado. A gente mergulha fundo sem tomar o fôlego necessário. E falta ar. A visão é turva... Casa, escola, trabalho, casa, morte. O ciclo é vicioso. É cômodo. E você caminha. Em círculos. Toma seu último gole. O último suspiro. Seu requiem individual o acompanha desde a origem dos tempos. Até seu sonho... ou a lugar algum.

Qual o seu vício?

sábado, 28 de abril de 2012

BRANCA


emergem sobre meus olhos como alvas montanhas
duas
em perfeita simetria
sincronia
sedução
a forma arredondada
a fenda que as separam
e que as unem
o que guardam
a transparência
o realce
o enorme relevo
e se movem
como numa valsa erótica
compassadas
e dançam
e se atritam
não absorvem nenhuma cor
as duas
branca
absorvem meus olhos
e continuam
pra lá,
pra cá...
pra lá,
pra cá...


bentida sejas tu, calça branca!
bendita sejas tu, Bunda!

quinta-feira, 12 de abril de 2012

VIDA E VIZINHO


Noite
Cansaço
Sofá
Conversa
Baseado
Música
Risos
Brisas
Divas
Negras
Junkies
Alto
Alto
Alto...

Vizinho
Puto
Janela
Grita
Berra
Fode
Explode
Vai...

Volta
Mira
Atira
Acerta
Mata...

O jovem
A música
A conversa
Os risos
O baseado
O sofá
As divas
As brisas
O cansaço
A noite

A liberdade
A vida

E dorme

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

RESPIRE, EXPIRE, NAMASTÊ

Acordo de ressaca. E não é uma ressaca qualquer. É uma ressaca de segunda-feira. Mais uma de muitas. A noite passada foi regada a cerveja e cachaça com licor de gengibre. Uma mistura experimental que compensa conferir, diga-se de passagem. Medida de um para um. Acordo com sede e ainda com muito sono. Tenho que levantar. Minha piscomassoterapeuta me esperaria às 16 hr em sua sala. E não faltava muito para isso. Já não sou o único que enxerga minha loucura. Apesar de que o primeiro passo para se constatar a loucura é a negação dela pelo próprio louco. Se eu assumo minha loucura quer dizer então que me resta um pouco de sanidade...
Levanto. Estou sozinho em casa. Preparo um suco de laranja para aliviar a boca seca. Sento na poltrona da sala vestindo ainda minha samba canção. Bebo o suco e olho para a TV desligada. Ela é bem mais interessante assim. Eu faço o meu canal. Eu faço o meu programa. E o processo é mais rápido. Não tenho que ver nem ouvir nada para depois mandar para minha já confusa mente alguma coisa. Tudo nasce ali, na mente. E permanece ali. A ideia bruta. Não quero lapidá-la. Não agora. Sinto preguiça. Sinto sono. E ainda sinto sede. Agora a sede é maior. Não quero só molhar a boca.
Caminho pela rua em direção ao consultório. A luz do sol me incomoda. Amenizo com um óculos escuro vagabundo que achei em casa. Sinto o peso do meu corpo em cada passo lento que dou. A gravidade deve ser relativa. Pelo menos nesse universo que eu criei. Pelo menos agora. Estou desatento a carros e pedestres. Um amigo poderia passar ao meu lado e eu ignoraria. Um ônibus poderia passar sobre mim e eu ignoraria. Estou desatento a tudo. Caminho com apenas o objetivo de chegar. E chego.
Ambiente claro. Música para meditação. Cheiro de incenso. Uma cadeira grande e confortável coberta por uma manta vermelho sangue em um dos lados, de frente para outra cadeira sem destaque algum, no outro lado da sala. Um colchonete com lençol descartável separava os dois assentos. Uma decoração oriental enfeitava o local. Seria realmente relaxante permanecer ali. E, por um instante, foi. Os poucos segundos de silêncio em que a única coisa que eu fiz foi depositar minha preguiçosa bunda na cadeira, claro, de destaque - eu era o destaque - e observar toda aquela sala. Até o silêncio ser quebrado com um "o que anda acontecendo?".
Volto para aquele já citado universo. Volto a ser o cara que procurou aquele lugar. Volto a ser eu. E o que sou eu? Minha analista fala algo sobre essência. Qual é minha essência? Digo que sou um eterno ator dessa desgraçada peça. Digo que sou o protagonista que vive diferentes personagens. Digo que sou mutável. Digo que já mudei muito. Digo que não acho a essência que me resta, se é que ela ainda existe. Se é que ela já existiu. Digo que o real e o imaginário já são íntimos demais. Não devia ter os apresentado. Digo que as coisas andam estranhas. Digo outras coisas. Digo muitas coisas. Ela também fala. E também fala muito. E não para. Deixo de ouvir. Sinto uma distorção nas cores. Sinto uma distorção nas coisas. Cruzo as pernas e observo o rosto, agora surreal, falando comigo. Só consigo distinguir palavras soltas. "Ausência", "pai", "passado", "mãe", "família", "deus", "fuga", "realidade"... Penso que todos eles devem ter o mesmo vocabulário. Minha imaginação alcança a velocidade da luz. Vejo as cenas da noite anterior. Vejo amigos. Vejo uma garota ruiva. Vejo um copo cheio. Vejo os bancos de madeira ocupados. Vejo conversas. Vejo, de uma varanda, a noite. Vejo minha garota e meu amigo conversando e minha atenção indo embora e encontrando no final da avenida um rosto formado pelas árvores e pelas sombras. O rosto é sério. Embora sereno. Cabelos de folhas de árvore. Olhos de sombra. Nariz de árvore. Boca de sombra. Grande. Intenso. Sedutor. Ele não diz nada. Nem eu...
Estou de novo na sala. O resto da conversa dura menos do que durou até agora. Ela passa para a segunda etapa da consulta. Deito no colchonete e minhas costas voltam ao lugar depois de pisões e massagem. Recebo energias canalizadas nos meus chakras. Não lembro se comentei, ela era especializada em Reiki. Confesso não ser totalmente descrente ou crente disso, mas é no mínimo um jeito de sair da monotonia. De algum modo me sinto melhor. Me sinto melhor quando falo asneiras. Me sinto melhor quando minhas costas estão no lugar. Terminamos a sessão com um demorado alongamento enquanto a copio e a escuto dizer "respire", "expire", "respire", "expire", "respire", "expire"...
Ela se despede com um charmoso "Namastê". Eu retribuo. Mas a sede que já era maior agora chega a me sufocar. E eu me afogo para matá-la. E volto a me corromper, baby.

sábado, 21 de janeiro de 2012

JAZZ, ROCK, SOUL, BLUES

A cantora canta
Sou todo ouvidos
Sou olhos
Sou vontade
Sou predador...
A luz é baixa e o som é alto
O desejo implícito já não é segredo
O meu copo se esvaziou o bastante
Minha cautela também
A canção segue
E o tom também
Meu olhar prossegue
E o da cantora também
Os passos são marcados pelas notas graves do baixo
E eles vacilam, oscilam, tropeçam
Sou confusão
Sou indeciso
Sou psicótico
Sim!
Dissimulo
Engano
Finjo
Jogo...
Há algo maior, baby!
Não tem como negar
Respiro fundo e tomo coragem
Coragem, baby!
Coragem para deixar minha caça fugir
E ela foge...

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

DE PONTA CABEÇA

Nenhum homem deveria ter o direito, sobre outro, de afirmar ser seu aquilo que é bem comum da Terra, que é bem comum de todos.
O homem tem o dever de viver em harmonia com a natureza e, numa relação recíproca, dar e oferecer bens (e entenda esse "bens" no seu sentido mais amplo). E quase o faz, se não esquecesse a reciprocidade e o papo de harmonia.
"Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma". E o homem transforma!... Mas transforma tanto, que o acumular passa ser mais importante do que a necessidade. Não a própria necessidade de quem transforma, que já foi saciada há tempos. Não a necessidade do HOMEM. Mas sim a necessidade de quem ainda espera para ser saciada, a necessidade que não mais grita. A necessidade dos HOMENS. E não mais grita não porque perdeu as esperanças, mas porque não tem mais energia pra continuar. Porque seu grito já foi muito calado. Porque seu grito já apanhou. Já sangrou. Já foi morto.
O mundo prossegue. Não tem como parar. Porque diabos não se pode parar a Terra?! Maldito sonho, Raul! Agora tento acordar nele também.
Desgasto-me, corroo-me, acabo-me, canso. Canso de ver tanta baboseira ser colocada em primeiro plano enquanto a tal necessidade ainda espera por saciar-se. Canso de ver a Terra se transformando, como se transforma, como "a" transformam, como a estragam. O HOMEM suga tanto quanto consegue sugar. E OS HOMENS continuam necessitando. O mundo é um paradoxo virado de ponta cabeça.
E eu tentando ficar em pé...

BONECA

Segunda-feira de ressaca. Ressaca mental. O natal faz isso com a gente. Não com toda a gente, mas com aquela gente que se pergunta o porquê de mais essa babaquisse. Enfim, era segunda-feira. Era pós natal. Era um dia qualquer.
Meu cartão de crédito havia estourado e por isso arranjei um emprego com meu tio. Ele era caminhoneiro. Visitaríamos algumas cidades do Sul de Minas. O clima bucólico das estradas de Minas me agrada. As montanhas, as plantações, os gados, as galinhas, o cheiro de merda... Eu tinha duas horas de sono e uma empolgação tão grande quanto o tempo que dormi. 
Fizemos as entregas em ordem geográfica, tendo como referência a cidade pela qual saímos: Pouso Alegre. Grande cidade. Não era uma cidade grande, mas era grande o bastante para me dar o que eu queria no pouco tempo que passava por lá. E da referência, depois de várias visitas, chegamos a Pouso Alto e partiríamos para um bairro rural do município.
A chuva decorava nosso dia. O clima cinzento em meio as serras que atravessávamos numa estrada de terra tão rústica como meu humor, me deixava ainda mais puto. Não gosto de chuva. Mas acho que nada me alegraria aquele momento.
Meu tio é daqueles que fala pouco. E do pouco que fala você ainda pode filtrar bem o que diz. Nesse agradável momento, fazia a propaganda de uma loira que nos atenderia. Começou mal. "A primeira vez que fui lá achei ela meio estranha. Ela é grande, sabe? Meio machona... fortinha... mas tem um rosto bonito. Até pensei besteira da moça, mas a voz dela é de menina. Ela tem a voz de menina. Essa eu deixaria fazer uma chupetinha! Haha... Não daria em cima dela, mas se ela oferecesse..."
Não tive esperança nenhuma, mas confesso que meu sub consciente, buscando algo parecido com a perfeição - porque é sempre isso que fazemos -, imaginou algo como uma loira gostosa de um metro e oitenta, bunda e peitos fartos, uma coxa tão grossa quanto sua educação, sua cor um pouco rosada pelo ardente sol da roça, olhar tímido, cabelos compridos e levemente encaracolados.
A viagem continuou. Barro, grama, árvores, vacas, cachorros, passarinhos, cercas, rios, pontes, estrada, mata-burros, nuvens, casas, carros, sono... Merda! Devo ter cochilado. Acordo e a primeira coisa que vejo é um pingo de chuva escorrer pelo parabrisas do caminhão. A segunda é a loira. Realmente grande. Acho que chegamos.
Saio do caminhão para ajudar a manobra para estacionar. Depois, vou levar a nota fiscal a alguém. O local era um bar. Sujo. No meio do nada. Um grupo de caras mal encarados me aponta a loira como a responsável pela nota. Ela limpava o chão do bar, no que seria uma varanda com uma mesa mal feita de sinuca. O som era alto e tocava uma música filha da puta de ruim. Dessas que não se ouve nada, só servem para manter um ritmo para as vagabundas mexerem o rabo. 
Chego até ela e... meu cacete! Meu tio acertou no grande, forte e estranha, só esqueceu de mencionar a barba mal feita, o gogó e os ombros largos. Era um ser bizarro, grande mesmo, gordo, desengonçado, assustador, de roupas curtas e uma voz que tentava, inutilmente, clonar a de uma menina. Tinha olhos claros e perdidos em algum lugar. Perdidos na busca de algum lugar. Na busca de alguém.
Tive pena. Mas tive medo antes. O homem é medíocre até nos seus atos de piedade. Eu teria ateado fogo naquela fera, num primeiro instante, e depois senti algo próximo (ou distante, porém parecido) à compaixão. Quis falar com ela (e), não por ser parte do espetáculo do diferente, mas por ser simplesmente diferente. Eu tinha a consciência de encará-la (o) como um ser igual a qualquer outro, independendo suas escolhas. Mas insistia em procurar suas diferenças com o mundo. Não que eu goste do mundo. É que sempre nos impuseram um molde, e por mais que eu fuja dele, os que fojem dele em outra direção, também serão destaque.
Terminei a entrega com a cabeça baixa. Tentei evitar qualquer contato com ela (e). Vamos embora. Não falei mais do que "onde ponho a mercadoria?". No caminho, penso nos pais da (o) moça (o). Duas cabeças tão conservadoras quanto o próprio conservadorismo. Gente religiosa, simples, sistemática. O quanto reprimiram, humilharam, maltrataram o filho (a). O quanto fizeram para que isso não se fizesse. O quanto lutaram. O quanto, também, sofreram. E nada adiantou. O indivíduo se fez como ser individual. Como ele é. Como nós somos. Únicos.
Eu vou embora, e a última cena no bar que vejo é a grande loira acertar a maquiagem no espelho do balcão. Tentando ser mulher. E de certa forma, por mais que grosseira, sendo.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

REVEILLON


Dez, nove, oito... eu já estou bêbado. E puto. Todo o mundo enchendo o bucho e a cara. Pernil, Leitoa, Chester, Bacalhau, Lentilha, Tutu de feijão, Arroz e o cacete a quatro. Cerveja, Vinho, Vodka, Rum e toda a baitolagem que tinham.
Sete, seis, cinco... eu tenho uma taça na mão. Todos tem. E ninguém pensa em outra taça, senão a sua. Dinheiro, sucesso, felicidade, saúde, "amor"... pra mim! Você que se foda. Você que reze pelas suas conquistas. Meu deus me trará tudo o que quero, porque eu tenho fé. Rezemos por todos, mas que eu seja o centro das atenções.
Quatro, três, dois... eu tenho vontade de vomitar e ainda não comi nada. O sorriso de cada um é o soco no meu estômago. Todos riem por esperar algo melhor desse ano que virá e que será igual ao que passou. E será igual porque ninguém faz nada de fato.
Um, zero... Os fogos. A Champagne estourando. A serotonina induzida. Os rostos felizes. O abraço. As palavras. E tem tanta gente que não queria dizer nada. Não queria o abraço. E o faz! Faz tudo. Por fazer parte da cortesia imposta pelo tempo. Por achar que isso faz dela uma pessoa melhor. Por ela ser educada. Por ela ter compaixão. Por ela ser alguma coisa. As pessoas tem de ser alguma coisa. 
Assistimos aos fogos. Barulho, explosão, luz, barulho. Comento com alguém que a luz dos fogos vem adiantada do som pela velocidade da luz ser maior que a do som. Foi uma das poucas coisas que eu disse na noite. Acho isso interessante. Reparo que após as explosões uma nuvem de fumaça toma o céu. Devíamos ter um espetáculo só de fumaças. O mundo tem muito mais a ver com fumaça do que com luz. E as fumaças tomam forma. Me lembram a época em que eu via coelhos de algodão nas nuvens. Mas dessa vez não eram coelhos. Não de algodão, pelo menos. Eram formas abstratas. Eram nada. Eram tudo. Eram a minha mente se expressando no escuro céu. Eram o underground. Eram eu.
Espero acabar com a paciência de que se fossem durar para sempre. E pareceram durar...
Hoje é dia primeiro de janeiro. Hoje é um dia como qualquer outro.