domingo, 14 de abril de 2013

MAIS UMA NOITE


     É fácil observar alguma coisa estando longe. Mas quando você está perto não enxerga muita coisa que devia enxergar. E eu estou perto. E você está perto. E todo mundo está perto demais daquilo que não quer enxergar. A gente tá perto do pior. Mas ignora. É mais agradável ter só o que a gente quer por perto. É só isso que a gente quer enxergar. É isso que a gente quer que seja verdade. É confortável. É cômodo. Mas toda a realidade se desfaz. Por um capricho. Por um desejo. Ou mais. Ou tudo. Ou nada. Tem muita coisa que a gente deixa longe. Tem muita coisa que a gente deixa passar. Tem muita coisa que a gente ignora. Não faz nada. Mas tá ali. Tá com você. E comigo. Por mais que você pense estar longe. É perto. Nada está longe o bastante de você se te fere. Te envolve. Você acha que foge, mas tá ali. Tá aqui. Com você. Comigo. Com qualquer um. A gente não foge daquilo que a gente sente. A gente não foge de nada. Todas as partes nos compõem. E porque dói, a gente sente. E sabe que existe.

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     Já é tarde o bastante pra muita coisa. Pra conveniência do posto, por exemplo. Ou pra mim. Não sei. Eu nunca soube. Essa é a verdade. Se é que existe verdade. Eu nunca soube de nada. Eu levei. Levei como pude. Ou como disseram que tinha que levar. Ou como tentei levar. Não sei. Tudo tomou um fluxo que eu não pude deter. Sempre teve um fluxo. Eu achei que tivesse controle por algum tempo. Mas não se controla fluxo nenhum. Ele segue. Você acompanha. Saiba disso ou não. Sempre teve um fluxo. E você sempre fez parte. E eu sempre fiz parte. Eu fiz parte... E não quero mais fazer.
    
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     Tenho um copo de gim e todo o tormento mental. Minha cabeça queima. Meu corpo dorme. Mas não o bastante. Meu corpo ainda responde por toda a tortura. Física e mental. Todo o trabalho forçado. Toda minha vida forçada. Toda a minha paranóia. É difícil usar seu corpo quando a mente denuncia. É difícil fazer qualquer merda pra ganhar o bastante pra nada. Pra ganhar o bastante para os donos. Pra ser uma peça. Eu não sou uma peça. E nem nada disso que eu fiz. E nem nada do que dizem pra eu ser. E nem nada do que eu ando fazendo. Eu não sei o que sou. E nem me deixam saber. E nem me deixam ser. Porque dizem que eu preciso. Preciso ser qualquer coisa. E de tanto precisar, eu não sou nada. Nada. É difícil ser nada. É difícil se aceitar como nada. É difícil representar nada. Sabendo o que eu fiz. O pouco que eu realmente fiz. Que eu fiz de verdade. Sendo eu. Ou o que sobrou de mim. Não sei. Mas por saber que esse pouco existe. E que esse pouco é alguma coisa. E que qualquer coisa compõe o todo. Eu... E você... Estamos dentro dessa porra toda. Somos parte disso. Mas pra eles não é qualquer coisa que faz parte do todo. Não desse todo. Não desse mundo. Você fica de fora. Você é nada pra eles. Você é nada.
     Tenho um álbum do Pink Floyd. Coloco no toca discos que eu não comprei. Na sala que eu não tenho. No apartamento que não é meu. Com móveis que eu não trouxe. Eu não tenho nada. E tenho tudo. Por pouco tempo. Pelo tempo que tiver. Ou pelo tempo que eu deixei passar. Qualquer coisa é sua se você fizer sua. É só lembrar que já era seu antes de alguém pegar. É só lembrar que pra alguém ter aquilo você abriu mão sem saber. É só lembrar que tudo foi tirado do mundo. Do mundo que é seu. É só lembrar que tudo tá aí. Aí bem perto. E se não tá com você, é porque alguém pegou. O mundo é um puta roubo. E só os grandes têm grandes coisas. Porque roubaram tudo que é grande. Roubaram antes de você. Porque não te deram chances. Amordaçaram sua boca, prenderam suas mãos, taparam seus olhos e te deram choques pra não reagir. Escolheram o lugar do seu berço. E disseram que o túmulo você escolheria. O mundo é um jogo comprado. E eu cansei de jogar. Apago todas as luzes. Acendo um cigarro. E o sofá me serve outra sentada. Depois d'eu ter me servido de outra dose. E outra. E outra. E outra...
     Tenho uma banheira. Nunca tive uma banheira. Agora eu tenho. No apartamento que não é meu. E encho-a até a boca. Preciso de tampões improvisados e água quente do chuveiro. Mas ela tá cheia. E pronta. E eu me preparo. Olho a janela circular que ilumina todo o banheiro. É grande e amarela. E deixa entrar a luz dos outros apartamentos. Olho no espelho a imagem borrada de alguém que um dia eu fui. E que é borrada por eu não ser mais. Ou por eu nunca ter sido. Eu não sei... É difícil perceber o que aconteceu. É difícil perceber o que eu fui. Ou no que me tornei. A existência anacrônica do meu ser dependeu muito menos de mim do que de todo o resto que me cercou. Ninguém se reconhece ao voltar do inferno. Não mantém os mesmos olhos. Nem se esforça pra não se corromper. Ninguém esquece uma dor. Mas não adianta, eles não vão entender... Desabotoou minha camisa sem pressa. Jogo ela de lado como se alguém me observasse. Olho mais uma vez no espelho. A última. Tiro minhas calças e as outras peças com menos paciência. Pareço já ter esperado o bastante. É difícil esperar quando toda a sua paciência já foi pro saco. É difícil esperar quando todo mundo te fez esperar. É difícil esperar quando você foi sempre o último. É difícil esperar por algo que não vai chegar. É difícil esperar. E sempre foi. Pra qualquer um. Pra qualquer coisa. Esperar sempre foi um porre.
     Tenho meu corpo submerso. E o gim. E meu tormento mental. E Pink Floyd. Syd Barrett transcendendo toda sua loucura. Mas eu já to cheio da minha. O que eu preciso é cair fora. Agora isso é tudo. Ou alguma coisa. Ou nada. Não sei. E nem tem mais importância. O fluxo continua. E os corpos e vidas continuarão o seu processo de decomposição. Pra renascer das cinzas. E se afundar em merda de novo. É como se sempre tivesse alguém mais forte por perto te dando porrada. E você fica puto. Mais por não conseguir fazer nada do que pela porrada mesmo. Mas nada disso importa pra elas. As pessoas. Elas estão ocupadas demais. Elas crescem demais. Elas se educam demais. Elas estudam demais. Elas trabalham demais. Elas gastam demais. Elas acumulam demais. Elas comem demais. Elas bebem demais. Elas desperdiçam demais. Elas cagam em tudo. Mas nada disso importa. As pessoas continuarão andando em círculos. E as pessoas continuarão se enganando. E propagando o falso amor. E sendo mesquinhas. E arrogantes. E continuarão cuidando da vida alheia. E dando importância a status. E sendo egoístas. E intolerantes. E inventando mentiras. E mantendo o medo. E excluindo minorias. E competindo. E sendo controladoras. E controladas. E continuarão buscando poder. E humilhando. E abusando. E matando. E destruindo. E toda a merda que sempre fizeram. E que vão continuar fazendo. Porque as pessoas são vírus. E estão empenhadas em sua missão. E dormem tranquilo seu sono ignorante. E acreditam mesmo nisso. Não vão acordar. Elas estão presas. E você também. E eu também. Mas não importa. Não mais. Não pra mim...
     Adeus.