quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

RESPIRE, EXPIRE, NAMASTÊ

Acordo de ressaca. E não é uma ressaca qualquer. É uma ressaca de segunda-feira. Mais uma de muitas. A noite passada foi regada a cerveja e cachaça com licor de gengibre. Uma mistura experimental que compensa conferir, diga-se de passagem. Medida de um para um. Acordo com sede e ainda com muito sono. Tenho que levantar. Minha piscomassoterapeuta me esperaria às 16 hr em sua sala. E não faltava muito para isso. Já não sou o único que enxerga minha loucura. Apesar de que o primeiro passo para se constatar a loucura é a negação dela pelo próprio louco. Se eu assumo minha loucura quer dizer então que me resta um pouco de sanidade...
Levanto. Estou sozinho em casa. Preparo um suco de laranja para aliviar a boca seca. Sento na poltrona da sala vestindo ainda minha samba canção. Bebo o suco e olho para a TV desligada. Ela é bem mais interessante assim. Eu faço o meu canal. Eu faço o meu programa. E o processo é mais rápido. Não tenho que ver nem ouvir nada para depois mandar para minha já confusa mente alguma coisa. Tudo nasce ali, na mente. E permanece ali. A ideia bruta. Não quero lapidá-la. Não agora. Sinto preguiça. Sinto sono. E ainda sinto sede. Agora a sede é maior. Não quero só molhar a boca.
Caminho pela rua em direção ao consultório. A luz do sol me incomoda. Amenizo com um óculos escuro vagabundo que achei em casa. Sinto o peso do meu corpo em cada passo lento que dou. A gravidade deve ser relativa. Pelo menos nesse universo que eu criei. Pelo menos agora. Estou desatento a carros e pedestres. Um amigo poderia passar ao meu lado e eu ignoraria. Um ônibus poderia passar sobre mim e eu ignoraria. Estou desatento a tudo. Caminho com apenas o objetivo de chegar. E chego.
Ambiente claro. Música para meditação. Cheiro de incenso. Uma cadeira grande e confortável coberta por uma manta vermelho sangue em um dos lados, de frente para outra cadeira sem destaque algum, no outro lado da sala. Um colchonete com lençol descartável separava os dois assentos. Uma decoração oriental enfeitava o local. Seria realmente relaxante permanecer ali. E, por um instante, foi. Os poucos segundos de silêncio em que a única coisa que eu fiz foi depositar minha preguiçosa bunda na cadeira, claro, de destaque - eu era o destaque - e observar toda aquela sala. Até o silêncio ser quebrado com um "o que anda acontecendo?".
Volto para aquele já citado universo. Volto a ser o cara que procurou aquele lugar. Volto a ser eu. E o que sou eu? Minha analista fala algo sobre essência. Qual é minha essência? Digo que sou um eterno ator dessa desgraçada peça. Digo que sou o protagonista que vive diferentes personagens. Digo que sou mutável. Digo que já mudei muito. Digo que não acho a essência que me resta, se é que ela ainda existe. Se é que ela já existiu. Digo que o real e o imaginário já são íntimos demais. Não devia ter os apresentado. Digo que as coisas andam estranhas. Digo outras coisas. Digo muitas coisas. Ela também fala. E também fala muito. E não para. Deixo de ouvir. Sinto uma distorção nas cores. Sinto uma distorção nas coisas. Cruzo as pernas e observo o rosto, agora surreal, falando comigo. Só consigo distinguir palavras soltas. "Ausência", "pai", "passado", "mãe", "família", "deus", "fuga", "realidade"... Penso que todos eles devem ter o mesmo vocabulário. Minha imaginação alcança a velocidade da luz. Vejo as cenas da noite anterior. Vejo amigos. Vejo uma garota ruiva. Vejo um copo cheio. Vejo os bancos de madeira ocupados. Vejo conversas. Vejo, de uma varanda, a noite. Vejo minha garota e meu amigo conversando e minha atenção indo embora e encontrando no final da avenida um rosto formado pelas árvores e pelas sombras. O rosto é sério. Embora sereno. Cabelos de folhas de árvore. Olhos de sombra. Nariz de árvore. Boca de sombra. Grande. Intenso. Sedutor. Ele não diz nada. Nem eu...
Estou de novo na sala. O resto da conversa dura menos do que durou até agora. Ela passa para a segunda etapa da consulta. Deito no colchonete e minhas costas voltam ao lugar depois de pisões e massagem. Recebo energias canalizadas nos meus chakras. Não lembro se comentei, ela era especializada em Reiki. Confesso não ser totalmente descrente ou crente disso, mas é no mínimo um jeito de sair da monotonia. De algum modo me sinto melhor. Me sinto melhor quando falo asneiras. Me sinto melhor quando minhas costas estão no lugar. Terminamos a sessão com um demorado alongamento enquanto a copio e a escuto dizer "respire", "expire", "respire", "expire", "respire", "expire"...
Ela se despede com um charmoso "Namastê". Eu retribuo. Mas a sede que já era maior agora chega a me sufocar. E eu me afogo para matá-la. E volto a me corromper, baby.