domingo, 14 de abril de 2013

MAIS UMA NOITE


     É fácil observar alguma coisa estando longe. Mas quando você está perto não enxerga muita coisa que devia enxergar. E eu estou perto. E você está perto. E todo mundo está perto demais daquilo que não quer enxergar. A gente tá perto do pior. Mas ignora. É mais agradável ter só o que a gente quer por perto. É só isso que a gente quer enxergar. É isso que a gente quer que seja verdade. É confortável. É cômodo. Mas toda a realidade se desfaz. Por um capricho. Por um desejo. Ou mais. Ou tudo. Ou nada. Tem muita coisa que a gente deixa longe. Tem muita coisa que a gente deixa passar. Tem muita coisa que a gente ignora. Não faz nada. Mas tá ali. Tá com você. E comigo. Por mais que você pense estar longe. É perto. Nada está longe o bastante de você se te fere. Te envolve. Você acha que foge, mas tá ali. Tá aqui. Com você. Comigo. Com qualquer um. A gente não foge daquilo que a gente sente. A gente não foge de nada. Todas as partes nos compõem. E porque dói, a gente sente. E sabe que existe.

*******

     Já é tarde o bastante pra muita coisa. Pra conveniência do posto, por exemplo. Ou pra mim. Não sei. Eu nunca soube. Essa é a verdade. Se é que existe verdade. Eu nunca soube de nada. Eu levei. Levei como pude. Ou como disseram que tinha que levar. Ou como tentei levar. Não sei. Tudo tomou um fluxo que eu não pude deter. Sempre teve um fluxo. Eu achei que tivesse controle por algum tempo. Mas não se controla fluxo nenhum. Ele segue. Você acompanha. Saiba disso ou não. Sempre teve um fluxo. E você sempre fez parte. E eu sempre fiz parte. Eu fiz parte... E não quero mais fazer.
    
*******

     Tenho um copo de gim e todo o tormento mental. Minha cabeça queima. Meu corpo dorme. Mas não o bastante. Meu corpo ainda responde por toda a tortura. Física e mental. Todo o trabalho forçado. Toda minha vida forçada. Toda a minha paranóia. É difícil usar seu corpo quando a mente denuncia. É difícil fazer qualquer merda pra ganhar o bastante pra nada. Pra ganhar o bastante para os donos. Pra ser uma peça. Eu não sou uma peça. E nem nada disso que eu fiz. E nem nada do que dizem pra eu ser. E nem nada do que eu ando fazendo. Eu não sei o que sou. E nem me deixam saber. E nem me deixam ser. Porque dizem que eu preciso. Preciso ser qualquer coisa. E de tanto precisar, eu não sou nada. Nada. É difícil ser nada. É difícil se aceitar como nada. É difícil representar nada. Sabendo o que eu fiz. O pouco que eu realmente fiz. Que eu fiz de verdade. Sendo eu. Ou o que sobrou de mim. Não sei. Mas por saber que esse pouco existe. E que esse pouco é alguma coisa. E que qualquer coisa compõe o todo. Eu... E você... Estamos dentro dessa porra toda. Somos parte disso. Mas pra eles não é qualquer coisa que faz parte do todo. Não desse todo. Não desse mundo. Você fica de fora. Você é nada pra eles. Você é nada.
     Tenho um álbum do Pink Floyd. Coloco no toca discos que eu não comprei. Na sala que eu não tenho. No apartamento que não é meu. Com móveis que eu não trouxe. Eu não tenho nada. E tenho tudo. Por pouco tempo. Pelo tempo que tiver. Ou pelo tempo que eu deixei passar. Qualquer coisa é sua se você fizer sua. É só lembrar que já era seu antes de alguém pegar. É só lembrar que pra alguém ter aquilo você abriu mão sem saber. É só lembrar que tudo foi tirado do mundo. Do mundo que é seu. É só lembrar que tudo tá aí. Aí bem perto. E se não tá com você, é porque alguém pegou. O mundo é um puta roubo. E só os grandes têm grandes coisas. Porque roubaram tudo que é grande. Roubaram antes de você. Porque não te deram chances. Amordaçaram sua boca, prenderam suas mãos, taparam seus olhos e te deram choques pra não reagir. Escolheram o lugar do seu berço. E disseram que o túmulo você escolheria. O mundo é um jogo comprado. E eu cansei de jogar. Apago todas as luzes. Acendo um cigarro. E o sofá me serve outra sentada. Depois d'eu ter me servido de outra dose. E outra. E outra. E outra...
     Tenho uma banheira. Nunca tive uma banheira. Agora eu tenho. No apartamento que não é meu. E encho-a até a boca. Preciso de tampões improvisados e água quente do chuveiro. Mas ela tá cheia. E pronta. E eu me preparo. Olho a janela circular que ilumina todo o banheiro. É grande e amarela. E deixa entrar a luz dos outros apartamentos. Olho no espelho a imagem borrada de alguém que um dia eu fui. E que é borrada por eu não ser mais. Ou por eu nunca ter sido. Eu não sei... É difícil perceber o que aconteceu. É difícil perceber o que eu fui. Ou no que me tornei. A existência anacrônica do meu ser dependeu muito menos de mim do que de todo o resto que me cercou. Ninguém se reconhece ao voltar do inferno. Não mantém os mesmos olhos. Nem se esforça pra não se corromper. Ninguém esquece uma dor. Mas não adianta, eles não vão entender... Desabotoou minha camisa sem pressa. Jogo ela de lado como se alguém me observasse. Olho mais uma vez no espelho. A última. Tiro minhas calças e as outras peças com menos paciência. Pareço já ter esperado o bastante. É difícil esperar quando toda a sua paciência já foi pro saco. É difícil esperar quando todo mundo te fez esperar. É difícil esperar quando você foi sempre o último. É difícil esperar por algo que não vai chegar. É difícil esperar. E sempre foi. Pra qualquer um. Pra qualquer coisa. Esperar sempre foi um porre.
     Tenho meu corpo submerso. E o gim. E meu tormento mental. E Pink Floyd. Syd Barrett transcendendo toda sua loucura. Mas eu já to cheio da minha. O que eu preciso é cair fora. Agora isso é tudo. Ou alguma coisa. Ou nada. Não sei. E nem tem mais importância. O fluxo continua. E os corpos e vidas continuarão o seu processo de decomposição. Pra renascer das cinzas. E se afundar em merda de novo. É como se sempre tivesse alguém mais forte por perto te dando porrada. E você fica puto. Mais por não conseguir fazer nada do que pela porrada mesmo. Mas nada disso importa pra elas. As pessoas. Elas estão ocupadas demais. Elas crescem demais. Elas se educam demais. Elas estudam demais. Elas trabalham demais. Elas gastam demais. Elas acumulam demais. Elas comem demais. Elas bebem demais. Elas desperdiçam demais. Elas cagam em tudo. Mas nada disso importa. As pessoas continuarão andando em círculos. E as pessoas continuarão se enganando. E propagando o falso amor. E sendo mesquinhas. E arrogantes. E continuarão cuidando da vida alheia. E dando importância a status. E sendo egoístas. E intolerantes. E inventando mentiras. E mantendo o medo. E excluindo minorias. E competindo. E sendo controladoras. E controladas. E continuarão buscando poder. E humilhando. E abusando. E matando. E destruindo. E toda a merda que sempre fizeram. E que vão continuar fazendo. Porque as pessoas são vírus. E estão empenhadas em sua missão. E dormem tranquilo seu sono ignorante. E acreditam mesmo nisso. Não vão acordar. Elas estão presas. E você também. E eu também. Mas não importa. Não mais. Não pra mim...
     Adeus.

sábado, 29 de setembro de 2012

LIMBO


imagens surreais
na noite concreta
pétalas ásperas em
preto e branco
e manco
são jorge na lua 
mandou buscar
a mão morta
e o beijo tácito
flácido
rostos derretendo
com peitos infláveis
como balões amarrados
na ponta dos dedos
na ponta
no pico mais alto
gelado
frio
...
fico frio
fumo um cigarro
a cerveja já ta quente
eu devo ter dormido.

sexta-feira, 31 de agosto de 2012

AOS POUCOS


a monotonia diária
o potencial desperdiçado
a ordem bagunçada
o choro engolido em seco
a cerveja congelada
a média perdida
o amor não correspondido
o bolso vazio
a vontade calada
o cigarro aceso pelo filtro
a música baixa
o relógio adiantado
a distância próxima
a coragem molestada
o frio incômodo
o tesão castrado
a hora marcada
o grito sufocado
o sono sem dormir
o isqueiro sem gás
a sede incessante
o medo inflamável
a palavra vazia
a ausência importuna
a moral ultrajante
o coito interrompido
o sorriso amarelo
a simpatia forjada
a mão trêmula
o aluguel vencido 
a tosse seca

a mentira imposta
a cor desbotada
o todo incompleto
a vida não vivida

sinto um cansaço crônico
sinto minhas forças minguarem
sinto o fôlego faltar
sinto estar morrendo

aos
poucos
...

terça-feira, 28 de agosto de 2012

CONVERSA


"O que você procura?", diz ela.
Tudo está em sua mente. O modo como você enxerga as coisas. Como deseja que elas sejam. São o que você as faz ser. São pequenas ou grandes como você. São tristes ou felizes como você. São loucas ou sãs como você. São o que você diz. São o que você deixa de dizer... Mais uma vez, Ruiva. Deve ser o vermelho. Devem ser os olhos. Deve ser qualquer coisa.
Eu penso ainda na outra Ruiva. Penso na Morte. E penso que esqueceram de dizer o que não é óbvio. Penso que a vida não tem nada de óbvio. Penso que não tem nada a fazer sentido. Penso no improviso de tudo. Penso no solo que errei. Simplesmente por errar. Penso na música que ando ouvindo. Penso na distância. Penso na saudade. Penso na minha bebida. Penso na minha vida. E o cigarro queima. E eu penso. Penso... Pode ser isso... Já me disseram que pode ser isso. Pensar demais. Não é confortável descobrir que tudo que te disseram é mentira e que a vida é bem mais podre e entediante na realidade por essência. Mas as pessoas estão na realidade de aparência. Elas realmente acreditam nisso. E cooperam para manter essa realidade forjada. Sempre o conto de fadas. Inventaram a felicidade. Fizeram você acreditar nela. E depois fizeram você se culpar por não tê-la. A faculdade que você não fez. O emprego que você não conseguiu. O par perfeito que você nunca achou. O carro que você não comprou. O deus que você não acredita. O filho que você não teve. A vida que não existe. Mitificaram a vida. A vida é orgânica e se decompõe. A vida é dor. É visceral. É viva. Não é mito. Não é perfeita. É defeituosa. É crua. Mas o Feio não está na moda. O Estranho é estranho. O Preguiçoso é preguiçoso. O Louco é louco. Eu não quero nada disso. Não vou achar por aqui o que eu quero.


"Não procuro nada.", respondo.

domingo, 1 de julho de 2012

SOBRE POMBOS


Já devia ser umas 16 hr quando desliguei o telefone. O dia já tinha sido chateante o bastante. A última gota transbordou. De monotonia. De agonia. De nervos. Mergulho a cabeça na pia do banheiro e saio para comprar cigarros. Quase não faz sentido mais mandar oxigênio para os pulmões sem a fumaça. É tudo fumaça. Lembranças, anseios, desejos, fome, sede, tesão, força, ânimo... Sombria. Cinza. Fria. Fumaça. E ela dança no vento. E se perde. E some. E desmaterializa. Foge.
Paro em um parque já com os cigarros. Sento em um banco e ascendo o primeiro. Sento e observo a vida que passa. A minha e a dos outros. E eles parecem distantes. Assisto a tudo como se fosse o único na platéia. O único a assistir essa peça chata e entediante que é a vida. A minha e a dos outros. Comerciantes, donas de casa, advogados, médicos, letrados, cientistas, religiosos, estudantes, professores, jogadores de futebol, publicitários, jornalistas, analistas, minimalistas da vida. Minimalistas... A vida mingua porque a minguam. As portas da percepção estão fechadas. Você só vê parte do todo. Você minimiza. Ignora. Destrói. O todo é preenchido com um grande vazio. O vazio incomoda. Um incômodo crônico. Você perde sua liberdade. Você se prende a esse incômodo até encontrar outro pra te chatear. E de chateação em chateação se tem a "vida".
Trago a fumaça. Liberto-a para sumir. A fumaça. Trago e vejo pombos alinhados nos fios dos postes, nas árvores, no chão. Estão olhando. Estão na sarjeta. Estão a procura de migalhas. Estão sobrevivendo já condenados à morte. Sujos. Nojentos. Marginalizados. Excluídos. No submundo. Mas voam. Vivem no lixo. Essa é a condição que lhes foi imposta. Comem lixo. Respiram lixo. Observam lixo. Mas depois, voam.
Ascendo outro cigarro. As pessoas continuam caminhando. Eu continuo observando. Me sinto mais próximo aos pombos do que às pessoas. Sempre mantive aversão a pombos. Talvez fosse essa inconsciente semelhança. É difícil aceitar o podre dentro de si. É difícil aceitar que se está no lixo. É difícil ser parte do lixo. É difícil ficar com as migalhas. É difícil ser excluído do todo. É difícil aceitar o submundo. É difícil se ver fora do conto de fadas que sempre te contaram. É difícil aceitar o real. É difícil aceitar o abuso. É difícil fugir do abuso... Observo a rua. Como as migalhas da praça. Pouso num fio de alta tensão. Cago em cima de tudo.
Termino o segundo cigarro. Caminho pra casa. Não sei voar.

domingo, 17 de junho de 2012

ENTREVISTA (OU PAPO FURADO)


Estou sentado de frente ao entrevistador e escuto - ou não - toda a lavagem cerebral que ele tenta aplicar.

Saio do banho e escolho uma de minhas melhores camisas. Cabelo arrumado, barba feita, loção pós barba e perfume. Relógio no pulso. Eu já devia ter sacado daí que estava sendo abusado. De certa forma sabia. Abstraio. Junto os documentos e vou ao encontro marcado. A corda está no pescoço com o nó dado.
O local é um hotel. Aguardo um tempo no hall de entrada e depois me mandam para uma sala. Cadeira, mesa, cadeira. É a sala do interrogatório. Fico sozinho por mais um tempo. Deve ser parte do plano. A porta se abre. Vai começar. Nesse caso não existe o policial bom e o policial mau. Um engravatado faz o serviço dos dois. O policial bom começa. Sua forçada simpatia é irritante. Pergunta da minha vida como se realmente se importasse. Fala de sua vida como se eu me importasse. O próximo passo é tratar do cargo em questão. Diz todos os "benefícios". Foi rápido. Vez do policial mau. Fala de toda a merda. Fala e observa minha reação. Ele precisa saber se vou aguentar todo o estupro físico e psicológico. Não foi rápido. Mantive minhas expressões faciais inertes. Os tempos de poker me ajudaram. Não demonstrei meu desprezo. Não demonstrei nada. Vejo sua insatisfação por não ter conseguido. Escolhe falar da empresa. O policial bom volta. Diz o quanto é bom servir aquela empresa. O quanto eu posso "crescer" lá dentro. Maravilha! Ele me conta o seu conto de fadas. Diz que começou no mesmo cargo que eu. "Hoje sou casado e tenho uma vida financeira estável". Lixo. "Trabalhar aos domingos e feriados já é parte da minha vida. Domingos são chatos". Lixo. "Uma grande empresa, com grandes oportunidades". Lixo. Lixo. Lixo...

Estou sentado de frente ao entrevistador e escuto - ou não - toda a lavagem cerebral que ele tenta aplicar. Lixo. Deixo completamente de ouví-lo. Sua voz está distante. Ouço o ar condicionado funcionar. Ouço o falatório que começa fora da sala. Ouço minha cabeça gritando para parar. Agora o abuso já está presente demais para abstrair. Mantenho minhas expressões ainda inertes. O fôlego minguou. Não sobrou quase nada. Finjo ouvir o policial bom para ver até onde aguento. Ele para. Me entrega um questionário para finalizar toda a merda. "Responda esse questionário. Logo eu volto para buscá-lo". Estou sozinho de novo. É bom estar sozinho. Leio o questionário e sinto o mesmo cheiro podre de toda a conversa. "O que você espera da empresa?", "o que a empresa pode esperar de você?", "o que você acha de trabalhar aos domingos e feriados?", "porque esse trabalho é importante para você?"... lixo. Decido mudar o rumo das coisas. Respondo com total sinceridade as perguntas. Grito no papel toda minha náusea. Falo meus reais interesses e critico toda a groselha que tentaram me convencer. "Qual sua maior qualidade e seu maior defeito?". "sinceridade, nos dois casos", respondo. Acabo. Fico aguardando por mais alguns minutos na sala. O engravatado volta. Pergunta se eu terminei. Levanto e o encaro. Abro um sorriso sarcástico no rosto - o primeiro da entrevista - e estico o braço para entregá-lo. Ele devolve o sorriso com a ignorância de sua simpatia forçada pegando as folhas. 
Saio do prédio com a sensação de que perdi a vaga.

Acendo um cigarro. Volto a ter fôlego.

segunda-feira, 11 de junho de 2012

PALAVRAS SOLTAS


risco o fósforo
fogo
acendo as ideias
é recíproco
trago
encho os pulmões
aguardo
solto
as ideias ficam
escrevo,
ou não
falo,
ou não
penso...


encho o copo
dose dupla de palavras
mais uma vez
digo, ou não
me afogam
me sufocam
me torturam
me estupram
as palavras
malditas!
as palavras estão soltas
CUIDADO!
inundam minha mente
e a sua
falta tinta na máquina
tarde demais
empunho o revólver
miro as palavras
as ideias
a cabeça...


BANG.